Fazer é Construir. Percorrer é Desconstruir – Fernanda Fragateiro e Nuno Sousa Vieira

Fazer é Construir. Percorrer é Desconstruir – Fernanda Fragateiro e Nuno Sousa Vieira

Setembro / Outubro 2016

TEXTO CURATORIAL

O construído é para ser vivido. Habitado. Percorrido. Desconstruído. Quando o artista constrói é para alguém receber; viver; habitar; usar; observar; percorrer ou desconstruir. Cabe a este não só receber como oferecer: o seu sentido. Então há sempre duas direcções. O observador e o observado. O vazio e o cheio. Esta dupla direcção é o jogo da construção e desconstrução. Da obra e do seu receptor. Da arte e da vida.

Podemos encarar o espaço como algo onde foi criado lugar: disponível e com acesso. Tal como nos disse Martin Heidegger “espaço é, em essência, aquilo para o qual se criou lugar”. Apesar de parecer, e/ou estar, vazio e livre está, também, limitado. Um limite que não impede, mas que permite que algo seja passível de se (re)iniciar e potenciar presença. É esta presença (viva) que colocará o lugar enquanto espaço dotado de identidade; um sítio reconhecido. Um lugar cujo significado é dado por quem o usa; habita; percorre e desconstrói: o individuo.

A construção é aqui uma palavra-chave, na medida em que encaramos/entendemos o artista como um construtor. A este nível Fernanda Fragateiro (PISO 0) e Nuno Sousa Vieira (PISO-1) concedem uma especial importância não só aos materiais que utilizam, mas também, se não mais, ao próprio processo construtivo e não meramente criativo. Com frequência, ambos os artistas utilizam (ou usam) nas suas criações elementos arquitectónicos (ou ligados à arquitectura) como paredes, chãos, mesas, cadeiras, portas ou janelas e é, também, com eles que procuram relacionar e implicar o espectador com a sua obra. O carácter construtivo só conhece um lema: criar espaço, apenas uma actividade: preencher.

Realça-se assim, o artista que, também, constrói associando-o à prática que, tendencialmente, o artista contemporâneo assume, na medida em que tende a conceber/projectar e a criar obras tridimensionais, deslocandose ao local e trabalhando in situ, fazendo com que as obras se relacionem, adaptem, insiram, articulem e ajustem a cada espaço, por vezes a qualquer espaço, potenciando uma confrontação e tensão entre o lugar que ocupam – tradicionalmente espaço comum do espectador (o chão) – e o visitante.

 

PISO 0

Fernanda Fragateiro é uma artista que se interessa pela tridimensionalidade da escultura e a relação que os objectos estabelecem com o espaço e com o solo. É isto que acontece no Piso 0 – entrada da Galeria – onde a artista apresenta Conteúdo Desconhecido, #10 e #2, (2009), duas esculturas (em aço inoxidável polido) dispostas no chão da sala de forma, aparentemente, involuntária. Mas não. Esta, embora pudesse ser outra, colocação, além de precisa e de acordo com o espaço que a recebe é ainda decisora na circulação permitida e na passagem que confere ao visitante. Mais do que limitar, ela permite e define caminhos que possibilitam a exploração e a circulação em torno das peças; do espaço envolvente e da confrontação do observador consigo mesmo, que assim se torna observado de si próprio quando se introduz na própria obra. Desta forma, a artista intensifica a estética relacional e experiencial com as variações e rebatimentos simples, austeros e rigorosos que os elementos objectuais criam entre si, no ambiente envolvente e no espectador com estes.

O visitante torna-se num observador sem hipótese de conhecer, nem perceber, o conteúdo da caixa, pois estas transformam-se numa forma-conteúdo-reflexo de si mesmo. A forma e o conteúdo tocam-se. Unem-se.
E assim o hipotético vazio ganha corpo, pois potencia e possibilita a recepção. O pensamento. As sensações. Experiências. Partilhas. Passagens. E o (re)inicio.
Esta passagem para um novo início ganha toda uma outra dimensão ou sentido quando sabemos que as esculturas aqui expostas (e outras que aqui não estão, mas que foram apresentadas na Galeria Baginski na exposição “Conteúdo Desconhecido” em 2009), são construções de caixas encontradas na rua envolvente do atelier da artista. Nessa medida, “além da forma são simultaneamente tempo; memória de algo que esteve lá, mas que desapareceu” como escreveu Alda Galsterer para a exposição citada.

Uma outra obra, da mesma artista e ainda nesta sala, que também nos fala em memória, tempo, processo, passagem, desgaste, transformação e que transforma (ou transformou), e noutra possibilidade de construção é-nos oferecida por Contra a Parede #1 (2001), 47 Colheres de Pedreiro em madeira e aço com as faces polidas, que ampliam a noção da integração do espectador na obra e a todo o ambiente envolvente, reflectido nas duas esculturas de chão. Outro entendimento será a metáfora associada à construção habitacional que aqui assume um carácter de obra de arte. Antes, enquanto objectos de construção, úteis e funcionais (além de antigos e históricos – tal como o carácter de desgaste lhes confere), mas que, depois, foram sujeitos a uma descontextualização e retirada da sua função natural – tornando-se desnecessários e obsoletos. Inúteis. O gesto Duchampiano é aqui encarado quando os objectos assumem, agora, um novo contexto; uma nova vida.
A sua sacralização e impossibilidade de uso – que a artista lhes conferiu – são aqui enfatizadas pela sua colocação, de forma linear e rigorosa ao longo e literalmente contra a parede da galeria tal qual o seu título exige.

PISO -1

Na entrada para a sala do piso inferior, e na parede que a precede, encontramos duas pinturas-charneira de Nuno Sousa Vieira. Duas pinturas ‘objectuais’ e que foram, segundo o artista, as últimas pinturas realizadas, finalizando assim o caminho traçado até então, e permitindo, simultaneamente, o inicio do novo-caminho que se seguiu. Um decisivo ‘salto’ da pintura para a escultura e/ou a tridimensionalidade (que a própria pintura já nos permite ver).
Esta transição da pintura (parede) para a escultura/objecto (chão) é aqui realçada, na narrativa expositiva e na passagem das pinturas para as práticas artísticas que se vieram a tornar fundamentais no seu corpo de trabalho: como a escultura e o objecto.

A montagem destas obras permite perceber o interesse do artista pela obra-instalação, mais do que pela tridimensionalidade propriamente dita. No seu processo a recontextualização é tão importante como a contextualização. A pluralidade mais do que a singularidade. O diálogo tanto quanto a relação. O referente tanto quanto o auto-referencial. Parece querer dizer que a unidade está no todo.

É isto que aqui acontece, na medida em que esta sua exposição-especifica e colocação/disposição das obras, nesta parede no centro da sala “Estou aqui – da série Auto-retrato”, foram pensada e relacionadas especificamente para este momento expositivo. Se a aura existe é nesta condição, de em cada momento fazer algo diferente. Novo. Singular. As obras já foram mostradas, certamente, mas nunca desta forma ou neste formato.
A parede em L – construída propositadamente para este espaço galerístico – é usada enquanto albergue das restantes obras e com isso integrar-se, ou permitir integração, fazendo, ela mesmo, parte da obra – entendida como um todo. Esta estrutura torna-se um contentor do próprio artista, ou dos 10 anos processuais que aqui estão presentes (2006-2016). E aqui Nuno Sousa Vieira de um lado fala-nos de espaço, do outro (por trás) mostra-nos o avesso, normalmente ocultado, e é ao centro que coloca/insere a razão.

Goethe diz-nos que “de modo a que algo surja tem que se desagregar do todo”; Sousa Vieira parece querer dizer que de modo a que algo se una tem que se libertar de si.

 

Ver catálogo da exposição:

 

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